"Nem todos os problemas que estão na escola são violência", destaca doutora em psicologia escolar

 


Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP), Luciene Tognetta é pesquisadora nas áreas de convivência na escolabullying e violência. A psicopedagoga é docente na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara (SP).

Ela também atua como coordenadora da Rede de Comunidades de Cuidado e Apoio entre Estudantes, e é membro da Fundación América por la Infancia, sediada no Chile, e da Rede Iberoamericana de Convivência Escolar, no México. Luciene esteve em Porto Alegre neste mês a convite da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul

A pesquisadora participou de um painel sobre violência, que abordou casos recentes de ataques, como o ocorrido em Estação, e soluções para enfrentar os problemas. Em entrevista para Zero Hora, ela falou sobre as diferentes manifestações que os alunos podem apresentar dentro e fora da escola e abordagens para cada situação. 


Confira a entrevista

Um de seus principais objetos de estudo é a convivência escolar. O que é esse conceito e qual a importância de falar sobre isso? 

Dentro dessa violência que invade hoje as escolas, sob esse nome dado de violência, estão contidos muitos fenômenos. A isso nós chamamos de problemas de convivência na escola.

Esse nome seria uma forma muito mais eficaz de tratar o problema, até para ajudar os profissionais de ensino a lidar com eles. Quando chamamos todos os problemas de violência, é como se tivéssemos um único remédio para todos eles. E, na verdade, eles são distintos. A forma pela qual se corrige um menino que apresenta um comportamento inadequado com o uso do celular em sala de aula, por exemplo, não é a mesma forma de quando o menino leva uma faca e ameaça um professor, por exemplo. 

Nem todos os problemas que estão na escola são violência. São problemas de convivência, e esses problemas podem ser manifestações violentas. Como a própria agressão física, verbal, o porte de armas, as ameaças. Podem ser, inclusive, as violências institucionais, até as formas pelas quais a escola trata crianças e adolescentes. 


Como distinguir esses problemas de convivência? 

Existem os ataques às escolas, a ciberviolência, que está para além dos muros da escola, mas é um problema que afeta a escola. Uma escola hoje, em tempos atuais, não pode mais ser compreendida sem essa ideia de que a escola não tem mais paredes

Por outro lado, existem manifestações que não são de caráter violento. São manifestações de indisciplina, de incivilidade e de transgressões a regras que são convenções sociais. Ou que são regras combinadas à escola, que são negociadas pela escola. E por que é tão importante a gente separar esses dois grupos de problemas? Porque, por exemplo, quando um garoto joga um rolo de papel higiênico no vaso sanitário, isso não é uma violência

Ele está faltando com educação, com polidez, transgredindo uma regra. Mas ele não está causando uma violência, porque não existe na intenção dele ferir a dignidade de um sujeito. Mas a consequência do ato dele fere a dignidade das pessoas, no sentido que elas não vão ter como usar um banheiro sujo. 

Então, a maneira pela qual o professor ou o educador vai ter que lidar com esse problema vai ser ajustando esse comportamento e ajudando esse menino a reparar o seu erro, dando a ele a possibilidade de tomar consciência de qual o problema que ele causou para o resto da coletividade.   


Tivemos alguns casos de violência extrema recentemente no RS, envolvendo ataques e agressões. O que causa essa onda de violência?  

Depois da pandemia, nós tivemos um agravamento das situações de violência, mas de uma violência que tem sido velada aos olhos das autoridades. São violências sutis, muitas vezes indiretas, que quando percebidas já explodiram, já causaram fenômenos. Muitas vezes, difíceis de serem revertidos. 

Estou falando de violências relacionadas ao bullying, violências relacionadas às autoviolências, ou violências autoprovocadas. Que são a automutilação, sentimentos de solidão, sentimentos de exclusão, ideações suicidas, depressão, ansiedade.

Precisamos enfrentar esse tipo de violência. É uma necessidade, mas ela não é visível e ao mesmo tempo, muitas vezes, é ignorada e vista pelos adultos da escola como tédio, como vagabundagem, falta de interesse, “mimimi”, como uma geração que não quer saber de nada, uma geração que não é entusiasta, uma geração que perdeu o sentido da escola. 


Isso tem relação com grupos e comunidades da internet? 

Há grupos que agiam antigamente em subcomunidades na internet, aos quais não tínhamos tanto acesso antigamente, como na dark web. Mas que hoje nós infelizmente temos maior acesso, temos uma facilidade de integração a essas subcomunidades.

São muitas as variáveis que podem se relacionar às causas de uma violência extrema. Elas não têm uma única explicação.

Elas atuam no TikTok, no Discord, em redes muito mais comuns do que a gente imagina. A cooptação desses jovens nos jogos eletrônicos, nos chats desses jogos é muito comum. E eles estão sendo aliciados para pensarem do mesmo jeito, para se radicalizarem nesses estigmas de ódio às mulheres, de ódio a negros, aos nordestinos, aos pobre, àqueles que são diferentes. Há questões políticas, culturais, familiares e psicológicas que interferem.

São muitas as variáveis que podem se relacionar às causas de uma violência extrema. Elas não têm uma única explicação. Mas as pesquisas mostram que uma das explicações que se repete nos ataques é que, normalmente, os adolescentes que retornam à escola, como ex-alunos que atacam as escolas, foram ou relatam nas suas histórias de vida problemas de bullying. Ou por situações de vitimização sistemática, que é uma violência escondida. 

Quem é que sabe quando os jovens estão sendo cooptados por outros jovens em subcomunidades da internet? Os próprios jovens. Então, é necessário organizar nas escolas sistemas de apoio entre pares. Para ajudar aqueles que estão com problemas, aqueles que estão solitários, que são excluídos. 


Como as escolas, gestores e redes de educação devem agir para prevenir situações assim?  

Por que saber dessas violências escondidas é tão importante? Porque elas não são vistas. Assim, elas são guardadas, sentidas e sofridas pelos adolescentes. Os adolescentes são humanos, e ninguém consegue permanecer por muito tempo com um sofrimento assim. É como se a gente estivesse colocando água num copo.

Precisamos modificar a estrutura da escola para que esses alunos se sintam pertencentes, a ponto de que uma ação violenta nem passe pela cabeça deles.

Em algum momento, esse copo vai vazar. E muitas vezes, a gota d 'água que falta é pequena, mas faz transbordar. Então, uma escola que não permite que os alunos pensem as regras junto com ela, que não abre espaços para planejar ações, que não abre espaços para discutir quais são os problemas e como resolvê-los, são escolas que vão colocando gotas em alunos que já estão sobrecarregados, por causa desses sofrimentos, tristezas e angústias que vêm das relações entre pares, que vêm do bullying. Um bullying escondido, que vem dos sentimentos de solidão e de exclusão, e que não são trabalhados.

A gente precisa transformar a escola, prevenir para que essas situações não aconteçam. Nós prevenimos dando a esses alunos espaços para falar sobre as coisas que gostam e não gostam na escola, espaços para se discutir as regras. Se eu não gosto, vou ter que propor uma outra forma de resolver esse problema. Então, formas punitivas de se resolver os conflitos são formas que vão levar ao embate. Mas também não posso deixar que os alunos fiquem sem correções. Temos que pensar em formas de fazer isso sem precisar punir, sem precisar humilhá-los.

Precisamos modificar a estrutura da escola para que esses alunos se sintam pertencentes, a ponto de que uma ação violenta nem passe pela cabeça deles. 


Como isso pode ser feito na prática?  

Atacar professores e alunos significa que o tema da convivência tem sido um problema para as escolas. Significa que nós não temos dado ao tema da convivência o valor que ele mereceA lei no Brasil que prevê um programa em que haja a cultura da paz, em que haja o combate a violências sistematizadas, não está funcionando.

A lei que garante o direito dos alunos a uma aprendizagem da resolução assertiva de conflitos não tem sido organizada na escola. Estamos formando para a geografia, para a matemática, para a história, mas não estamos formando meninos e meninas que conseguem conviver. Eis o grande problema.

Meninos e meninas que se sentem valorizados não precisam se juntar a grupos e subcomunidades na internet que discursam sobre ódio.

Então, precisamos tornar a convivência também uma disciplina do currículo, como objeto do conhecimento que precisa ser pensado, precisamos ter espaços para se discutir. Existem técnicas de linguagem que precisam ser ensinadas na escola, do mesmo jeito como se usa técnicas de multiplicação. Esses espaços de escuta fazem com que eles se sintam valorizados. Meninos e meninas que se sentem valorizados não precisam se juntar a grupos e subcomunidades na internet que discursam sobre ódio.   


E quando acontece uma situação de violência extrema, como proceder para mitigar os efeitos desse ataque? 

A acolhida é a primeira coisa. As pessoas precisam ser acolhidas, precisam passar por um período de posvenção, que é cuidar das pessoas por conta do sofrimento que isso causou. Quando acontece um problema tão grave, não é por acaso que ela se chama violência extrema. 

É porque, de fato, ela tem uma complexidade muito maior do que outros tipos de violência. E, portanto, se ela tem uma complexidade maior, as causas dela não podem ser unificadas. Não é uma única causa, não são duas, mas é uma multiplicidade de causas e elas estão correlacionadas tanto com a escola, quanto a essa identificação dos adolescentes com discursos de ódio. 

São psicólogos escolares, orientadores educacionais que podem fazer essa acolhida. É preciso organizar dinâmicas de trabalho em que os alunos sejam acolhidos, em que os professores sejam acolhidos, em que os pais sejam acolhidos e que toda a comunidade educativa possa participar de momentos de escuta, de falar sobre os seus próprios sentimentos.


(Com informações do GZH)





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